sexta-feira, 20 de março de 2009

Carlos Drummond de Andrade - Caso do vestido

Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou.
Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa. Vosso pai vém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste.
O vestido, nesse prego, está morto, sossegado.
Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo!
Minhas filhas, escutai palavras de minha boca.
Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós,
se afastou de toda vida, se fechou, se devorou,
chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu,
me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou.

Em vão o pai implorou.
Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro,
beberia seu sobejo, lamberia seu sapato.
Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado, me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa,
que tivesse paciência e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.
Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos.
Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo.
E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade.
Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo.
Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto,
só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem.
Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam.
Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam.
O seu vestido de renda, de colo mui devassado,
mais mostrava que escondia as partes da pecadora.
Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte, mas a morte não chegava.
Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio,
visitei vossos parentes, não comia, não falava,
tive uma febre terçã, mas a morte não chegava.
Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes,
meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.
Um dia a dona soberba me aparece já sem nada, pobre,
desfeita, mofina, com sua trouxa na mão.
Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido, última peça de luxo que guardei como lembrança
daquele dia de cobra, da maior humilhação.
Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou.
Mas então ele enjoado confessou que só gostava de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas, fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara,
me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu: vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito de ofender
dona casada pisando no seu orgulho.
Recebei esse vestido e me dai vosso perdão.
Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes?
quede graça de sorriso, quede colo de camélia?
quede aquela cinturinha delgada como jeitosa?
quede pezinhos calçados com sandálias de cetim?
Olhei muito para ela, boca não disse palavra.
Peguei o vestido, pus nesse prego da parede.
Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio, mal reparou no vestido e disse apenas:
— Mulher, põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou, comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem,
comia meio de lado e nem estava mais velho.

O barulho da comida na boca, me acalentava, me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada.
Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.


P.s: Um dos que eu mais gosto!

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